CF 2017: Uma nova concepção de vida fraterna

Nicolau João Bakker, SVD

Introdução:

Surpreendeu-me o tema da CF de 2017: “Fraternidade: biomas brasileiros e defesa da vida“. O que a fraternidade tem a ver com os biomas brasileiros? Tradicionalmente nossos biomas são seis: a Amazônia, o Cerrado, a Caatinga, a Mata Atlântica, o Pantanal, e os Pampas do Sul. Ultimamente se acrescenta a eles a Zona Costeira e Marinha. Não é um pouco artificial ligar estes biomas ao conceito de fraternidade?

icone_cf2017_bioma A fim de encontrar uma resposta mergulhei na minha infância. Lembrei-me do lugar onde nasci: quase dois metros abaixo do nível do mar, num dos famosos “pôlderes” holandeses, uma grande e rica extensão de terra cercada pelos não menos famosos “diques” da Holanda. Tudo fruto de uma luta mais do que secular contra a temível bravura do mar. Chamavam-nos de “frísios do Oeste”, isto em oposição aos frísios “de verdade” que moravam do outro lado de um grande braço do mar, a 25 km. de distância. Lá se falava uma outra língua que nem sequer entendia. Aliás, mesmo do nosso lado, em cada aldeia, de 3 em 3 km, o linguajar do povo – e também o modo de brincar, caçoar, torcer e opinar – era um pouco diferente. Em seu conjunto, nós, frísios do Oeste, constituíamos claramente uma “tribo” bem diferente das demais tribos holandesas. Depois de adulto me dei conta que até na religião éramos diferentes. Tínhamos, sem dúvida, um modo bem próprio de encarar as nossas obrigações religiosas.

Quando minha família, na década de 1950, emigrou para o Brasil, estabelecendo-se numa pequena cooperativa agrícola na área metropolitana de Campinas (Holambra), eu, com 21 anos de idade, enfrentei um mundo totalmente novo. Juntamente com meu pai e meus três irmãos, era preciso aprender a tirar o sustento para uma família de 11, não mais a partir de um único alqueire do bioma pôlder, mas agora a partir de um bioma inteiramente diferente. Os muitos cupinzeiros esparramados pelo velho pasto à nossa frente não deixavam dúvida. Estávamos diante de um “latifúndio” de 14 alqueires de cerrado paulista. Trabalhando na roça com paulistas, mineiros e cearenses, goianos, baianos e paranaenses, fui logo percebendo que cada um/a trazia do seu bioma de origem – evidentemente com variedades regionais – um mundo próprio, não apenas no sotaque, nos costumes e nas tradições, mas também em todo um jeito particular de encarar a vida.

CF 2017: Uma nova concepção de vida fraterna

Animais dos biomas brasileiros, ilustração por Digerson Araújo

De fato, mais do que nosso estado ou região de origem, é o bioma que define o viver, conviver e sobreviver do ser humano. A modernidade, com sua fortíssima tendência de criar o “homo globalis” – fruto de uma mídia homogeneizadora e um novo estilo de vida, urbano, escolarizado, e industrializado – tende a aniquilar o efeito bioma, mas não há como. Cada bioma é o resultado de forças cósmicas que mudam apenas a longuíssimo prazo e que ultrapassam em muito a capacidade humana de, de alguma forma, dominá-los. Muito antes de o ser humano destruir o bioma, o bioma irá destruir o ser humano. Em muitos sentidos o bioma “gera” o ser humano, dando-lhe sua característica própria, não apenas nas feições do corpo, mas também nas da alma. A não ser que algum imperialismo religioso a tenha modificado, em cada canto do planeta encontraremos uma população originária dirigindo ao mundo do além uma oração particular e muito própria.

O objetivo deste artigo é demonstrar que, das ciências da vida, surge uma nova concepção de “vida fraterna”. Se queremos realmente “defender a Vida”, como pede a Campanha da Fraternidade, vamos ter que “educar o nosso olhar” – como dizia Teilhard de Chardin (†1955) – e perceber que, de fato, somos irmãos e irmãs não apenas dos nossos semelhantes, os seres humanos, mas também, como já intuía São Francisco de Assis (†1226), de todos os demais seres vivos do planeta. Faremos isto, em primeiro lugar, observando “a Vida como ela é”. Em seguida veremos que também o bioma, como a própria “Vida”, é sempre uma “teia partilhada”. E, finalmente, tiraremos algumas conclusões pastorais “em defesa da Vida”.

I –  “A Vida como ela é”

A fraternidade, antes de ser um fenômeno social, é um fenômeno biológico. Trata-se de um exagero colocar as coisas desta forma? Parece, mas não é. A “Vida”, apesar das ocasionais aparências contrárias, é, toda ela fraternal ou sororal. Podemos perceber isso melhor quando colocamos debaixo da lupa uma célula viva, de qualquer ser vivente que seja, observando o seu “metabolismo” celular.1 Antes de mais nada devemos então distinguir entre células sem núcleo central e células com núcleo central. Os especialistas falam em células “procariontes” e células “eucariontes”. Durante os primeiros dois bilhões de anos, a Vida no planeta Terra, iniciada há cerca de 3,7 bilhões de anos, foi comandada basicamente pelas bactérias, seres vivos unicelulares sem núcleo central. Seu DNA é mil vezes mais simples que o nosso e não passa de um único cordão de uns 4000 genes que flutua livremente no líquido – o “citoplasma” – celular. Mas não subestime as bactérias. Elas, sem sexo algum, podem multiplicar-se a cada vinte minutos e partilhar entre si até 15% do seu código genético diariamente! Esse “pool gênico” deu a elas a capacidade de adaptar-se às mais diversas e duras condições de um planeta em permanente transformação. As bactérias acabaram “inventando” os principais mecanismos de sustentação da “Vida” que ainda hoje marcam o dia a dia do metabolismo celular: a fermentação, a fotossíntese, a fixação do nitrogênio, a respiração aeróbia, a pigmentação, a locomoção, etc.

Vejamos isto colocando debaixo da lupa a “nossa” célula, a eucarionte, isto é, a que possui um núcleo central e que apresenta uma complexidade muito maior do que a das bactérias. Devemos à grande microbióloga, Lynn Margulis, a comprovação científica de que não são apenas as mutações genéticas e as transferências genéticas diretas – como a das bactérias – que fazem evoluir a vida, mas que existe também a poderosa força da “simbiogênese”.2 É aí que percebemos com maior clareza que a “Vida”, em qualquer nível, depende inteiramente da tal “fraternidade biológica”. Todas as células eucariontes são fruto de uma integração, uma colaboração íntima e permanente – uma “simbiose” – entre forças vivas antes separadas. Tomemos como exemplo a simples alga do mar, a antecessora das plantas. Colocada debaixo da lupa, os especialistas percebem que seu núcleo genético é uma fusão de dois tipos diferentes de bactérias: a “arqueofermentadora” – capaz de decompor cadeias de carbono, ou acúcares, transformando-os em fonte de energia – e uma outra já capaz de locomoção, a “nadadora”. Mais adiante uma terceira bactéria veio enriquecer o conjunto da célula: a “respiradora”, especializada em respirar oxigênio. Estes novos seres que, há aproximadamente dois bilhões de anos, resultaram desta múltipla fusão, ainda unicelulares, vieram receber depois a inestimável colaboração de uma quarta bactéria, a “fotossintetizadora” (a cianobactéria verde-azulada). Mas os resquícios desta encontramos apenas no “reino” das plantas, e não no reino dos fungos ou no reino dos animais.

icone_cf2017_bioma_01Ajustemos, porém, ainda mais a lente da nossa lupa. Dentro do núcleo central de cada célula eucarionte podemos observar claramente um pequeno “mininúcleo” que, em conjunto com o DNA principal do núcleo central, dá origem aos aproximadamente 500.000 “centros de produção”, ou “ribossomos”, espalhados pelo fluido celular, cada um produzindo, além das proteínas e enzimas necessárias, também as quatro “organelas” principais que sustentam a Vida da célula: 1) as “usinas solares”, ou cloroplastos, que – apenas nas células vegetais – absorvem do ar o dióxido de carbono e a energia do sol, e da terra a água e os minerais, para, com ajuda de enzimas, transformar tudo em açúcares alimentares, devolvendo ao ar o oxigênio (= fotossíntese); 2) as “casas de força”, ou mitocôndrias, que, também com ajuda de enzimas, realizam a respiração celular, usando a energia proveniente do oxigênio para decompor as indispensáveis moléculas de açúcar, transformando-as em “transportadores de energia”, as famosas moléculas de “adenosina trifosfato” (ATP), que fornecem energia a todas as células, e ao corpo, quando e aonde for necessário; 3) são produzidas ainda as “bolsas de armazenamento” que servem de reserva e acondicionamento dos produtos celulares para serem usados quando necessário; e, 4) as “usinas de reciclagem” onde se faz o reuso de elementos não usados ou danificados. Que bela lição de “Vida”, onde tudo colabora com tudo e nada é desperdiçado!
Foram esses novos seres com núcleo central e alta complexidade, chamados “protistas”, que evoluíram, passando de unicelulares a multicelulares, até transformar-se, por caminhos diferentes, nas atuais plantas, fungos e animais. Ao reino destes últimos – devemos humildemente reconhecer – pertencemos todos nós. As bactérias, enquanto isso, como também os protistas, mantêm seus reinos próprios. Sabe-se lá o que ainda vão inventar para garantir a sobrevivência da “Vida” no planeta! Estão quase onipresentes, tanto dentro quanto fora do nosso corpo. Um minúsculo centímetro cúbico de terra fértil contém bilhões delas! Continuam da maior importância. Um exemplo? Repare na atmosfera terrestre. Nela há 21% de oxigênio. Se o nível subisse para 25%, tudo na terra entraria em combustão. Se baixasse para 15%, nada conseguiria respirar. São principalmente as bactérias que mantêm o nível adequado.

Se queremos entender a “Vida” como ela é, não existe melhor retrato do que este do metabolismo celular. A célula, porém, não é inteiramente autônoma, pois através de sua “membrana” – resistente, mas permeável – ocorre um vai e vem contínuo de material orgânico. É sempre o “meio ambiente” local que dá sustento à Vida, permitindo, inclusive, (raros) momentos de superação. Mas não existem comandos externos, ou causas únicas. As células se renovam permanentemente, e isto “por própria conta”. Elas, sem causa externa, tiram cópias de si mesmas, ou “se auto-replicam” como dizem os entendidos. Qualquer mudança é sempre fruto da ação conjunta da célula toda, e a Vida apenas permanece como fruto de relações. Qualquer isolamento significa morte. Uma espécie de fraternidade faz, portanto, parte da essência da Vida não-consciente. Se na Vida consciente as coisas, frequentemente, são diferentes, não é a conversão ecológica, ressaltada pelos últimos papas, a única solução? A mesma teia de interrelações colaborativas que caracteriza a célula, caracteriza também o órgão no qual a célula está inserida. E assim também o organismo e as interrelações entre órgãos e organismo. Não importa tratar-se de uma humilde planta, um animal feroz ou qualquer outro ser vivo. Apenas a Vida consciente pode interferir no padrão das relações vitais, no sentido de efetivamente contrariá-las.

II –  Biomas: teias de vida partilhada

Estendendo agora o nosso olhar para os grandes biomas devemos, em primeiro lugar, perceber que a mesma teia de relações que caracteriza a Vida da célula caracteriza também o bioma. O caráter bioquímico da Vida não permite exceção à regra. Assim como a célula, o órgão e o organismo, também o bioma, por maior que seja, não é inteiramente autônomo. Através de suas divisas – sua “membrana” permeável – ocorre um permanente vai e vem de energias cósmicas que lhe dão sustento. As nuvens carregadas de vapor do mar trazem água, o elemento mais precioso e indispensável da natureza. Sobras são passadas adiante. Os ventos expulsam o calor excessivo do ar, restaurando a temperatura ideal. A energia solar está abundantemente disponível para a fotossíntese de todas as plantas verdes. Da mesma forma o oxigênio, fornecendo energia às mitocôndrias de todos os seres viventes. Como já vimos, é o meio ambiente adequado que permite à Vida prosperar.

Mas cada bioma tem também sua personalidade própria, sua identidade. E esta, também, se renova e se perpetua “por conta própria”, graças às inúmeras relações colaborativas que são específicas a ela. Um exemplo prático talvez ajude a esclarecê-lo. Recentemente, numa viagem ao sul do Pantanal com alguns familiares, passamos por uma estreita estrada de terra rumo à Pousada & Camping Santa Clara. Num determinado percurso de não mais de 30 km. passamos por quase 40 pontes de madeira, todas de difícil manutenção. Ao lado da estrada uma imensidão de água de sete metros de profundidade, quase cobrindo a mata verde, buscando uma saída apressada por baixo das pontes. Perguntando ao rústico mas bem informado guia turístico da Pousada sobre o porquê de tantas pontes de difícil e cara manutenção, obtive uma resposta muito esclarecedora. “Aqui no Pantanal”, dizia-me com simplicidade o simpático guia, “dependemos muito da água. Nas águas altas nem acesso à Pousada não tem. Repare naquela árvore. A parte mais escura do casco mostra que a água, ainda há pouco, estava acima da estrada. As muitas pontes estão aí para a água escoar o mais depressa possível. Daqui a dois meses todos os pastos por aqui estarão secos. Temos agora as últimas chuvas de verão. Elas são muito importantes para nós. O sedimento das águas deixa uma fina camada de lodo sobre as raízes da grama, não permitindo que a nova grama se desenvolva bem para o gado comer. A grama tem que crescer antes do tempo da seca. Sem estas chuvas o gado pode morrer e eu perco o meu emprego.”

Tiro na mosca. Da sabedoria humilde de um experiente pantaneiro recebi uma grande lição ecológica: cada bioma é uma autêntica teia de vida partilhada. Todos/as dependem de tudo e de todos/as. Na estrada passamos, de fato, por uma grande boiada, voltando dos poucos campos altos para as grandes baixadas. Seguramente mais de mil bois, todos miseravelmente magros, à espera de novos e mais generosos pastos. Entendi que, originalmente, cada bioma tem sua economia muito própria. Pareceu-me até que os boiadeiros haviam encarnado o lento mas seguro ritmo das estações. Amavelmente nos deixavam passar, mas sem nenhuma pressa, deixando aos bois a decisão de sair ou não do caminho. Nas pousadas por onde passamos encontramos na mesa os produtos locais, sempre com algum toque diferente, original. Produtos oferecidos com orgulho pantaneiro. Nas conversas não apenas o sotaque, mas todo um jeito próprio de sentir as coisas do lugar e contar sua história. Uma “cultura” própria, diríamos nós. Em fim, cada bioma com seu jeito particular de viver, conviver e sobreviver. Assim como na célula, assim no bioma. Uma grande teia partilhada.

Volto a perguntar: trata-se de um exagero falar em “fraternidade biológica”? Entendo que não, porque a mais perfeita fraternidade cristã nada mais é do que pôr em prática, conscientemente, o que a própria “Vida” é de forma inconsciente. A Vida é sempre uma teia de relações colaborativas. Em qualquer nível, por onde olharmos para ela, em nenhum momento encontramos a imposição de algum elemento não-colaborativo ou mal intencionado. É comum alguma influência estranha ou até ameaçadora entrar no sistema, mas o conjunto das relações colaborativas estará apto a oferecer resistência e recuperar o equilíbrio, ou então, lentamente, adaptar-se. Como tudo está interrelacionado, qualquer “meio ambiente”, grande ou pequeno, estará sujeito, historicamente, a momentos de crise, ou até, esporadicamente, a grandes cataclismas, mas sempre de novo cada sistema, e os diferentes sistemas entre si, por suas próprias forças vitais internas, voltarão, adaptando-se, ao velho ou a um novo equilíbrio.
Não é o tema de reflexão deste artigo, mas é preciso fazer menção a algo misterioso que as ciências da Vida têm muita dificuldade em captar. Algo natural, pois a ciência, por si só, não pode captá-lo. Apenas pela fé é possível captar o sentido mais profundo daquilo que chamamos “Vida”. O renomado filósofo alemão, Hans Jonas, usa uma expressão muito adequada. Em toda a criação, ele diz, existe um “horizonte de transcendência”. Por mais de um bilhão de anos, a Terra desconhecia a “Vida”.

Apenas o interminável intercâmbio entre os elementos físico-químicos, em resposta ao meio ambiente cósmico. Mas existe uma espécie de “fraternidade inicial” entre os elementos da natureza. Suas diferentes polaridades elétricas os levam a “transcender” a individualidade e formar conjuntos marcados pela estabilidade. Em especial o carbono – a mãe de todos os produtos orgânicos – se presta a incontáveis combinações. Logo que o meio ambiente da Terra o permitiu, a fraternidade inicial evoluiu para a “fraternidade bioquímica” ou biológica que acima retratamos. De estágio em estágio, esta evolui na direção de uma complexidade cada vez maior. Dissemos acima que “o caráter bioquímico da Vida não permite exceção à regra”. Pois, a própria tendência à transcendência faz parte da regra! Após 620 milhões de anos de evolução, o cérebro humano possibilitou ao ser humano criar consciência de si mesmo e captar “o sentido” da Vida. Aí surge a “fraternidade consciente”, a marca registrada de todas as religiões, entre as quais a cristã.

Ninguém sabe qual o ponto final do processo. O inexistente não se sujeita à comprovação científica. Apenas a fé pode intuir a continuidade do “horizonte”. Nós, cristãos/ãs, acreditamos num “Reino” a construir, a “Nova Jerusalém” que, mais do que uma conquista, será um dom, pois “descerá do céu” (Ap 21,10). Ainda há um longo caminho à nossa frente. Quem sabe, uma globalização mais positiva possa um dia levar a humanidade a ter relações colaborativas muito mais amplas e profundas. As fraternidades conscientes construirão então a “Vida em Plenitude” sonhada por Jesus (Jo 10,10). Felicidade humana nada mais é do que isso.

III  – Por uma pastoral “em defesa da Vida”

Ocasionalmente alguns me perguntam: suas reflexões pastorais não são um pouco utópicas, longe da realidade pastoral do dia a dia? Digo: sim e não. A reflexão que acabo de fazer pode parecer teórica – e é -, mas ela é indispensável para quem, – padres, irmãs ou leigos/as -, se propõe a fazer algo concreto na direção do que pede a CF de 2017. Querer atuar “em defesa da Vida” sem ter uma clareza maior do que a “Vida” é, facilmente leva a equívocos. Apenas teorias, é verdade, de nada adiantam, pois a pastoral é feita de ações concretas, mas construir muros sem adequar o prumo é ilusório. É desperdício do nosso precioso tempo. Já dizia Santo Agostinho (†430) que não adiantam os grandes passos quando feitos nos caminhos errados. Por outro lado, lembrando meus tempos de professor de Pastoral, aprendi que “receitas prontas” não são muito educativas. Como vimos, a Vida apenas prospera com colaborações “autônomas”, embora integradas. Vamos tentar chegar mais perto do dia a dia sem cair na armadilha de aprisionar a criatividade.

3.1 Romper a couraça institucional

Esta é, no meu entender, a primeira pré-condição para um bom trabalho “em defesa da Vida”. E, acredite, ela mexe profundamente com nosso dia a dia. Se o papa insiste numa “Igreja em saída”, é porque estamos demasiadamente presos aos nossos incontáveis e incontornáveis compromissos paroquiais (ou institucionais). Estou em paróquia e sinto o desafio diariamente. Existe uma ciência, a da “cognição” ou “do conhecimento”, que afirma: nosso modo de atuar define o nosso modo de pensar! É, humanamente, quase impossível romper com as tradições que nos prendem, com as convenções sociais que nos ditam as regras, e com o contexto sócio-cultural que nos impede de ver o que está para além do nosso horizonte. Via de regra, o que se sedimentou no inconsciente fala mais alto do que o consciente.

Ora, não esqueçamos – especialmente nós, agentes pastorais, padres, religiosos/as ou leigos/as – que a Igreja, durante séculos, se manteve “avessa” ao mundo. A Igreja-Instituição se voltou com exclusividade para as preocupações intra-eclesiais. Depois do Concílio Vaticano II, marcadamente na América Latina, houve uma curta reação. As CEBs e as Pastorais Sociais deram um novo rosto à Igreja, mas, globalmente, as forças renovadoras não prevaleceram. Sem uma sacudida forte no ministério ordenado, especialmente por parte do Vaticano, o clericalismo irá prevalecer e os padres – em geral os animadores gerais do processo – se verão, na prática, presos aos limites impostos pela instituição. No momento do “agir”, a CF, seja no social, seja no ecológico, irá propor, sugerir, etc., mas ficará apenas no papel. Romper couraças institucionais é muito mais difícil do que imaginamos. Requer uma espécie de conversão. Quem quer partir “em defesa da Vida” deve largar (em parte!) a agenda paroquial, mobilizar tempo, e ir para onde a “Vida” corre perigo.

3.2 Saber articular-se

Esta é outra pré-condição. Hoje, em quase todos os cantos do Brasil, tem gente se preocupando com o meio ambiente. O grande bioma, pela sua enorme extensão, costuma ficar fora do alcance dos binóculos, mas lembrem: a “Vida” é feita de relações colaborativas. São tão importantes os níveis locais quanto os maiores. O bioma costuma ser dividido em grandes “bacias hidrográficas”. Estas são feitas de diferentes “sub-bacias” menores. E cada bacia menor se constitui de inúmeras “microbacias”. A “Vida” surgiu da água, e dela depende. Você que é padre, irmã, ou leigo/a, não vale a pena dar uma olhada ao redor, ver quem já está atuando, ou querendo atuar, e “articular-se” com estas pessoas “em defesa da “Vida”? Em certa fase de minha vida tive a oportunidade de atuar junto a uma ONG de meio ambiente de um pequeno município no interior do estado de São Paulo (na grande bacia hidrográfica do Rio Piracicaba).3 Fiz uma pequena cartilha popular sobre as 16 microbacias do município (Holambra). Cito uma parte do texto: “Microbacia é uma pequena área geográfica; toda água nela existente, ou toda chuva que nela cair, acaba fluindo para o mesmo córrego que lhe dá o nome”. E em destaque: “Todo ser humano vive numa microbacia. Não permita que se jogue qualquer sujeira nela. A microbacia é a sua casa”!

Você, leitor, já sabe o nome de “sua” microbacia? Procure saber e mãos à obra.4 O importante é “articular-se”. Mas, “ah!, são de outra religião”. Não importa. “São de outro partido”. Também não importa. “Não são da nossa paróquia”. Importa menos ainda. A única coisa que importa é “defender a Vida”. Com essa mania da nossa Igreja (ou será dos nossos bispos?) de apenas incentivar as pastorais “internas”, a “Vida” lá fora está numa agonia danada. Para muitos já é tarde demais para reverter a situação. Aliás, essa imperiosa necessidade de melhorarmos as nossas articulações não tem a ver apenas com o meio ambiente. É igualmente importante para todas as nossas pastorais sociais. Se em décadas passadas estas foram, quem sabe, até supervalorizadas, hoje elas – quando ainda existem – estão numa situação de dar dó. Frequentemente não existe mais nada, nem na Paróquia, nem na Região Pastoral. Não custa, porém, dar início a algo novo. Ultimamente, o que tem dado certo é a criação de pequenos “fóruns”. São mais maleáveis, pois podem priorizar ora a questão social, ora a questão ecológica. Por aqui criamos, de forma suprapartidária e suprarreligiosa, o nosso “fórum de entidades”. Estamos, neste momento, na preparação de um “Ato Ecumênico contra a violência” e, também, na preparação da nossa “Sexta Caminhada Ecológica”. Para esta última ainda falta definir o foco.

3.3 Focar nos inimigos do bioma

Seria muito saudável que todos/as fizéssemos uma boa análise da surpreendente Encíclica Laudato Si do papa Francisco. Não fala de biomas, mas está perfeitamente dentro daquilo “que a Vida é”. Mais de trinta vezes aborda o tema “tudo está interligado”.5 Mas, como o atual sucessor de Pedro não é de dar pontos sem nó, quase quarenta vezes cita como causa principal de uma eventual “catástrofe ecológica” (nº 4) o atual paradigma tecnocientífico, visto por todos os governos como o único caminho de enfrentamento e superação. Uma verdadeira ilusão global. Todos os biomas são fruto de uma delicada interrelação entre o clima predominante na área e uma grande variedade de condições locais, tais como: o tipo de solo, fauna e flora, a distribuição geográfica das águas, a densidade populacional, as condições de mercado, e até a tradição cultural das populações originárias. O que faz o tal paradigma tecnocientífico? Desconsidera e atravessa todas as condições específicas do bioma e impõe um sistema “exógeno” (extra-biômico) e único de produção e consumo, sem qualquer preocupação com as consequências sociais e ecológicas. Rasga-se simplesmente toda a “teia (tradicional) de vida partilhada”. E, como vimos acima, rasgando a teia da “Vida”, a morte é certa.
Evidentemente, trata-se de uma realidade mais visível nas áreas rurais do que nas áreas urbanas. Vocês que atuam numa área rural, seja na catequese, na liturgia, no dízimo, na pastoral familiar, da juventude, ou em qualquer outra pastoral ou movimento, já pensaram como incluir esta questão da defesa da “Vida” em sua agenda de trabalho? Vejam ao seu redor e reparem aonde o paradigma tecnocientífico está fazendo seus maiores estragos. Pode ser uma reserva indígena ameaçada que necessita, urgentemente, de apoio; uma quilombola prestes a ser invadida e fatiada pelo “progresso”; a crescente leva dos sem-terra; uma grande área de ribeirinhos que vê minguar sua tradicional fonte de proteínas (peixe?; produtos naturais?); uma rica reserva natural clamando por defensores; ou então, como ocorre na maioria dos casos, uma rica e produtiva agricultura orgânica e familiar que perde mercado porque todos/as se deixam seduzir pelos belos produtos apregoados na mídia. Ninguém se mexe, ninguém conscientiza, ninguém se articula contra? Perdida em meio às suas múltiplas e bem-intencionadas preocupações intra-eclesiais, a Igreja não pode correr o perigo de, pela omissão, ser como o “fermento” dos fariseus contra o qual Jesus admoestou os seus discípulos (Mt 16, 5-12)?

3.4 Valorizar o bioma como berço da fé

A configuração concreta da fé não é o/a missionário/a quem traz, mas o chão do bioma. O planeta Terra apresenta um grande mosaico de biomas. Em cada um deles, a “Vida”, como já vimos, tem rosto próprio. Os antropólogos culturais costumam ressaltar as grandes diferenças nos costumes e tradições das diferentes tribos e etnias. Nestas tradições, por mais que a modernidade queira eliminá-las, a fé ocupa um lugar central. Por quê? Simplesmente porque é, antes de tudo, o bioma que condiciona o modo do viver, do conviver e do sobreviver. Daí, desta realidade, nasce a comunicação humana, o modo de falar e o modo de pensar. Para manter a “Vida” de cada coletividade, inúmeras relações colaborativas são necessárias. Uma das principais é a busca coletiva do “sentido”, e é desta busca coletiva do sentido que nasce a fé da comunidade. O bioma é como que o berço da fé.
O chamado mundo cristão ocidental, com sua ânsia globalizadora – tanto na economia como também na fé -, por um longo tempo tentou passar por cima de tudo isto. Na economia, o pensamento único ainda é quase total, embora cresça, entre os descartados, a força de uma proposta alternativa (a economia solidária). Na fé, porém, as coisas já mudaram um bocado. Embora ainda com alguma restrição por parte do Vaticano, a ideia de uma “Revelação diferenciada”, tão cara ao teólogo belga Jacques Dupuis (†2004), se impôs entre os teólogos e, cada vez mais, também no senso de fé do povo cristão. Deus se revela em todas as religiões, e quanto maior o diálogo fraterno, mais rica a humanidade. Há quem creia que todas estas expressões de fé, que surgem das tradições populares, pertencem à “civilização agrária” que chegou ao fim. Seria preciso então mirar em algo totalmente novo para o futuro. Mais do que isso, creio que é preciso olhar para trás. Para o chão do qual nasce o ser humano e sua fé. Para a vida biológica que configura a “Vida” do ser humano. Um ser humano que sempre estará em busca de um sentido para a sua Vida, a fim de preservá-la o melhor que pode. Seu único recurso: a fé! Inclusive para ditar o rumo de sua economia.
Tudo isso é, pastoralmente, muito relevante. A missão da Igreja não deve ser globalizadora, mas “localizadora”. Valorizar mais a riqueza que cada bioma traz em defesa da “Vida”: acolher os modos de pensar característicos da população na evangelização, adotar as expressões típicas de sua mística na liturgia, e apoiar os caminhos próprios de sua população para superar os problemas por meio da ação sócio-transformadora. Em REB 298/2015, o missiólogo Paulo Suess comenta a fala do então (1992) cardeal Ratzinger, na comemoração do 5º Centenário da conquista das Américas, em Salzburg (Austria), tratando do tema “Evangelho e Inculturação”. Firmemente ancorado nas verdades incontestáveis da Congregação da Doutrina, o cardeal opina que uma “Páscoa curativa” deve sanar todas as culturas, não bastando a mera inculturação da fé. Dá para entender a preocupação do futuro papa, mas nós, cristãos/ãs, também precisamos de uma Páscoa curativa. A própria “Vida” nos ensina o caminho: o do diálogo fraterno, sem imposições.

Conclusão

Estabelecer um nexo entre biomas e fraternidade cristã, até muito recentemente, seria impensável. Mesmo hoje é preciso enfocar o tema de forma adequada para não tirar conclusões apressadas e sem nexo. Talvez, mais do que uma questão de doutrina, seja uma questão de espiritualidade. No cristianismo, mais importante do que o conhecer é o viver, o praticar.

Perceber que a fé cristã tem algo a ver com o ar que respiramos, com a flora e a fauna, e com as paisagens, as águas e o mar; dar-nos conta, enfim, que tudo está interligado, que não somos donos, mas parte da natureza, e que “somos todos terra”, como afirma o papa Francisco (LS 2), tudo isso está mais para sentimento, empatia e emoção do que para frias argumentações doutrinais. A Bíblia toda expressa esta reverência. Jesus a manifesta quando fala dos lírios do campo, e Francisco de Assis faz o mesmo quando pede ao irmão Antonio para, mais do que ensinar a doutrina teológica aos frades menores, se preocupe em ensinar o caminho da piedade. Sem uma mística, o ser humano não muda suas atitudes (LS 216).

Foi ao escrever este artigo que veio-me a ideia de fazer distinção entre fraternidade inicial, fraternidade biológica e fraternidade consciente. Não tenho dúvida que ocorreu um processo evolutivo neste sentido. A consciência humana, aliás, continua em evolução. Sem isto seria incorreto falar em “nova” concepção de vida fraterna. O amar ao próximo como a si mesmo não foi “inventado” por Jesus, como às vezes é sugerido. Já fazia parte da Antiga Aliança. Esta concepção religiosa nem é própria apenas da tradição semítica. Ela, embora com linguagens as mais diversas, é própria de todas as religiões, da humanidade enfim. Por trás de uma certa antropologia cultural – que marcou a nossa história escrita – devemos perceber a antropologia biológica que a antecedeu…. e que continua fortemente presente. Não se trata de uma linguagem meramente metafórica.

Na filosofia da nossa assim chamada pós-modernidade podemos observar uma fortíssima e surpreendente tendência para repensar a incansável busca humana por espiritualidade. Também a teologia moderna está em busca de um novo pensar sobre Deus e a religiosidade humana. Por mais importante que seja não perder de vista a riqueza das doutrinas acumuladas no passado, as ciências da “Vida” parecem sugerir que o melhor caminho talvez seja o de atentar melhor para “a Vida como ela é”, para assim captar, com maior segurança, o que possa ser a “Vida em Plenitude” almejada por Jesus. Neste sentido, também os biomas têm uma lição a dar. Que a Campanha da Fraternidade de 2017 nos ajude a não perder o foco. icone_cf2017_bioma_02

Nicolau João Bakker, svd

Missionário do Verbo Divino, sacerdote, formado em Filosofia, Teologia e Ciências Sociais. Atuou sempre na pastoral prática, rural e urbana. Em São Paulo, foi educador popular no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo, São Paulo (CDHEP/CL), e professor de Teologia Pastoral no Instituto de Teologia (Itesp/SP). De 2000 a 2008, foi auxiliar na pastoral e vereador no município de Holambra-SP. Representou a CRB no Conselho Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP). Atualmente atua na pastoral paroquial de Diadema-SP. Nos últimos anos publica regularmente na Vida Pastoral, REB, Convergência e Grande Sinal.
1) Maiores detalhes em Vida Pastoral Nº 278/2011.
2) Ver em: Margulis, Lynn, Symbiotic Planet: a new vision of evolution, New York: Basic Books, 1988. E: Margulis Lynn / Sagan Dorion, Microcosmos, São Paulo: Editora Cultrix, 2002.
3) Maiores detalhes em Vida Pastoral Nº 281/2011.
4) Maiores detalhes em Convergência (início de 2017).
5) Maiores detalhes em Convergência Nº 490/2016.