Ética, Estado, Religião e Razão
É necessário proclamar a confiança na razão prática humana, como capaz de discernir o bem do mal através do conhecimento das naturezas, das essências das coisas, e dirigir a vontade para o bem.
Contemporaneamente, toda a discussão sobre ética e leis passa necessariamente, nas mentes dos debatedores, por duas noções que se têm por indiscutíveis, pressupostas mesmo por quem se quer ter por “civilizado” e “culto”, e, portanto, admitido legitimamente a dialogar publicamente: trata-se da noção de “valores” e da ideia de “positividade legal”. É difícil até mesmo pensar em debater ética, leis ou comportamentos sem pensar nestas duas noções, e qualquer pessoa ou grupo que não as aceite como pressupostos indiscutíveis do debate ético atual corre o risco de ser visto como um homem das cavernas ou um protofascista, para dizer o mínimo.
A primeira noção, a noção de “valores”, vem da ideia de que não se pode deduzir nenhum dever-ser, nenhuma axiologia, a partir do “ser”. Vale dizer, a contemporaneidade nega que se possa validamente inferir normas de fatos. Isto, dizem nossos contemporâneos, constituiria uma falácia, a chamada “falácia naturalista” (como descrita, dentre outros, por David Hume e G. E, Moore).
É moeda corrente no pensamento ético e jurídico contemporâneo que qualquer apelo a uma suposta “lei natural”, deduzida do próprio ser, da natureza das coisas, constitui uma forma de pensar ultrapassada e inaceitável, e esconde crenças irracionais e a tentativa de impô-las aos outros sub-repticiamente. Exemplifico. Do fato de que homens e mulheres possuem carga genética essencialmente diferente, e funções corporais diferentes no processo reprodutivo natural humano, não se poderia tirar, segundo essa forma de pensar, nenhuma dedução normativa no sentido de que a união sexual entre homem e mulher devesse receber uma normatização diversa daquela entre duas pessoas do mesmo sexo. Do fato reprodutivo puro e simples não se poderiam, para eles, deduzir valores normativos sem cometer uma “falácia naturalista”, incidindo em erro. Portanto, qualquer dedução deste tipo esconderia preconceitos inconfessáveis, do tipo religioso ou tradicionalista, contra quem não aceita deduções deste tipo.
Com isto, a noção de “valor” fica remetida ao campo do subjetivo, do gosto, da emoção, da capacidade de mobilização contida numa ideia qualquer. Os valores, para essa contemporaneidade, decorreriam sempre da adesão pura e simples da vontade do indivíduo a determinadas crenças, emoções ou opções, sem nenhuma espécie de possibilidade de questionamento racional. Uma vez que adere a um sistema de valores, um indivíduo considera-se acima da possibilidade de ser questionado, quanto à razoabilidade desses mesmos valores, por qualquer outro indivíduo. A solicitação de fundamentação da crença do outro já é, em certa medida, tomada por uma insuportável expressão de intolerância, de hate speech, de fobia, de incapacidade de lidar com a diversidade. Se não há relação entre fatos e valores, como quer o pensamento contemporâneo, também não há relação entre valores e razões: a prevalência de determinados valores fundamenta-se na sua capacidade de provocar adesões, não na sua razoabilidade intrínseca. Porque, pensam os contemporâneos em sua maioria, apelar para a própria noção de que valores podem ter razoabilidade intrínseca esconde um discurso de dominação: valores são propagados por persuasão, não por convencimento, e a tentativa de fundamentação racional de valores nada mais é, para eles, do que uma forma desleal e manipuladora de tentar obter adesões dos espíritos menos críticos. E assim a razão humana é denunciada como uma perniciosa manipulação da “elite” frente a uma massa “desinformada” quanto à falácia naturalista.
A outra questão que se põe é a da exigência contemporânea da “positividade legal” de qualquer ordem ética para que seja reconhecida como válida publicamente. Vale dizer, os “valores” são tomados como mero “horizonte” que deve ser perseguido pelo Estado, quando legisla. Assim, na impossibilidade sequer de colocar a persuasão racional do outro como uma instância válida de reconhecimento de validade de determinada norma ética, os grupos eventualmente em conflito na sociedade buscam “empoderar-se” (para usar de um neologismo corrente nas discussões sobre o tema) no Estado a fim de tornar positiva, fazer adquirir força legal para a sua própria esfera de valores através de alguma instância normativa estatal. Daí os grupos de pressão, a luta pelo domínio ideológico do discurso universitário e cultural, o estabelecimento de “bancadas” disto ou daquilo no legislativo e o apelo ao “estado laico” cada vez que alguém faz apelo à razoabilidade de alguma norma ética não positiva. Não haveria, para estes, nenhuma ética fora do ordenamento estatal positivo, o que, é claro, além de tornar impossível a convivência social plural, transforma o Estado num grande “educador moralista” que ele não é, nem pode ser. E o direito, que existe para tratar de relações humanas a partir de sua exterioridade, vira um espaço de silenciamento moral do adversário pelo grupo de plantão no poder, através da categoria de “fóbico” aplicado ao pensamento divergente.
Neste sentido, o pensamento bíblico protestante (se é que se pode encontrar alguma homogeneidade em tal pensamento) parece até muito mais afinado com a contemporaneidade do que a tradicional posição tomista assumida pela Igreja Católica. Se, de fato, a Escritura é uma norma de fé autossuficiente, que exige adesão incondicionada, independente de quaisquer vinculações com a razoabilidade da postura pública do cristão, então ela também constitui uma esfera de valores absolutamente desvinculada dos fatos – e até mesmo muitas vezes contrafactual – que não incide, portanto, em nenhuma “falácia naturalista”. Assumir que a Escritura exclui, para os que aderem à fé cristã, qualquer outra fonte de valores reconhecíveis pela razão humana, ou seja, abraçar quaisquer das formas de “sola scriptura”, torna a defesa dos “valores” bíblicos uma atitude de “sola fide” (só de fé) que independe e mesmo exclui qualquer apelo à razão no debate público. Não é diferente, portanto, da posição dos grupos de pressão que promovem, por outro lado, a pansexualidade, o aborto, o rompimento da noção de família estável e reprodutiva, dentre outros grupos igualmente poderosos na cena contemporânea, com base na adesão voluntarista ou emotivista a uma “bandeira” vanguardista que consegue ver relação entre lutar pela “libertação sexual” e invadir despido um templo religioso, durante o respectivo culto, para protestar contra Deus. Ambos apelam para algum tipo de “sola fide” valorativa e acusam de intolerantes e irracionais os respectivos adversários. Ambos os lados parecem movidos pela mesma forma de agir, pela mesma postura sectária básica: os “valores” que defendem movem-se na esfera da conversão, não do convencimento. Todo estado que sai de embates assim é, no fundo, indistinguível de uma igreja. Ou, pior ainda, de um deus: somos maioria, ame-nos ou deixe-nos. Não parece uma posição menos estritamente religiosa, com a diferença de que parte de um deus não bíblico, mas nem por isso menos dogmático.
Que saída há? Proclamar, de novo, por um lado, a confiança na razão prática humana, como capaz de discernir o bem do mal através do conhecimento das naturezas, das essências das coisas, e dirigir a vontade para o bem. Mas para isso, precisaríamos retomar as noções escolásticas de bem, de essência, de natureza, de conhecimento, de ato e potência e principalmente a noção de que há causas finais na natureza, objetivamente discerníveis pela razão humana. E que tal confiança é capaz de fornecer, ao ser humano, um discernimento ético cuja capacidade de vinculação independesse, ou mesmo precedesse logicamente, a positividade do direito estatal. Ou seja, voltar a Tomás de Aquino – ao próprio Tomás, não a tomismos ou neotomismos. Voltar àquele que, se por um lado fundamentou os sistemas de valores na própria noção metafísica de ser, através da ideia dos “transcendentais (bem, uno, vero, belo), no diálogo com os que não creem no Deus cristão, dando uma base comum para uma convivência pacífica, não deixou de exortar, por outro lado, aos cristãos, que Jesus, na sua Nova Aliança, não nos deixou nenhuma ordem jurídica preestabelecida, “e assim nessas coisas não foi necessário que fossem dados alguns preceitos, além dos preceitos morais da lei, que são do ditame da razão”. Tomás confia que a razão humana é capaz de reconhecer suficientemente, na ordem natural, os fundamentos para o estabelecimento de uma ética comum nas questões que envolvem a convivência humana no plano social. Esta ética adquire sua força e razão de sua razoabilidade intrínseca, não de sua promulgação estatal. A esta reserva-se o campo do externo, do relacional, da distribuição e comutação dos bens materiais e da responsabilidade pública.
A proposta de Tomás, portanto, é que sejamos menos religiosos e mais razoáveis, pelo menos no trato da coisa pública.
Ética, Estado, Religião e Razão
Fonte: Paulo Vasconcelos Jacobina / Zenit